Curadoria 

   Vera Nunes

 

 

   O fest.Ar convida a população a entrar numa brincadeira dinâmica de encontros com obras de arte que não estão mais na rua,

mas que ainda têm o cheiro da última vez que foram vistas ali... 

   O convite é para ouvir e sentir a música,  junto aos artistas que ainda podem fornecer o alento que só a arte é capaz de trazer,

e que aliada à tecnologia mágica da realidade aumentada, promove o reencontro, mesmo que virtual, nesse ano peculiar de distâncias e aprendizados. 

   O passeio começa na Avenida mais paulista da cidade, brindando “Seis e Meia”, um coletivo de dois irmãos que nasceram em barrigas diferentes mas encontraram na arte para as ruas um propósito de vida infinito, de curativo social, colocando bandagem onde estava machucado, alegria onde era cinza. 

   Na sequência, avista-se o mestre dos magos, o célebre Rui Amaral, que traz a novidade do primeiro grafite na cidade, e a primeira empena cega naquela região, realizada por um conceito ainda muito novo à época, a pintura patrocinada. 

   Olhos atentos, celular em punho para registrar as várias possibilidades de intervenção, a beleza das diversas obras, algumas realizadas na noite anterior, que nos brindam com sua beleza e provocam curiosidade aos olhos de quem as vê.

   Rumo ao final da Paulista, encontram-se os signos coloridos e divertidos que o coletivo SHN promove em diferentes tons na nossa cidade, e mais adiante a praça do Ciclista, berço histórico desse movimento.

   Nesse trecho lhe convido a mudar a faixa e ouvir a música de Frank Zappa, preferida de Jaime Prades, que talvez estivesse ouvindo-a quando pintou essa obra tão incrível no “buraco da paulista”, quando ainda não tinha nenhuma tinta ali...

   Se pensas que já andou o suficiente, “olhe para o céu meu amor, veja como ele está lindo”, e nesse olhar surpreenda-se com o inusitado desenho da Nina Pandolfo em uma Caixa D’água do outro lado da rua...

   Finda a Paulista numa paisagem que muda o tempo todo, convida a apreciar as lembranças de uma doce primavera, obra do artista Nove Digital Orgânico, que assim como seu nome, vem se despedindo da cidade a olho nu, mas a revive com essa mágica!

    Adentre a Consolação, rumo à Roosevelt, para encontrar a obra do artista Tinho, nas proximidades do cinema que traz tão boas lembranças, que se misturam com a paisagem.

    De imediato, logo acima, a mensagem de protesto da artista OPS na Paisagem literária.

    Entre olhares atentos e encantados com as novas empenas cegas que o artista Mauro Neri presenteia nossa cidade, garotas ulltrapassam o estabelecido como aceito, Gi loba e Sujeitas, subindo paredes e imprimindo nas ruas seus nomes como marcação de um território que se estabelece como sendo neutro, mas na realidade  propõe essa neutralidade pela cor da tinta bege, cinza, ou ausente de informações...

   Para terminar esse rolê, reencontra-se Marielle, do Bueno Caus, resistência imortalizada ali no encontro da Consolação com a entrada do Minhocão, na praça que tem nome de presidente de outro pais, mas é Rosa, e tem verdades de todos, todas e todes espalhadas pelo caminho... lugar em que se encerra essa poética urbana, esse gostoso passeio.

 

Vera Nunes de Santana Ramos.

Curadora do Fest.AR, e dona do olhar afetivo para a cidade

 

 

 

 

 

 

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Co-curadoria 

Prila Maria

 

   No que tange a Escrita de Rua

    O graffiti é uma narrativa entre o indivíduo e a sociedade. Na compreensão do público em geral sobre a palavra graffiti, passa desapercebido que a vertente se divide em muitos outros segmentos, sendo um deles a Escrita de Rua. 

    Na publicação "The Pixação São Paulo Signature", o jornalista Steven Heller, que atuou durante três décadas como diretor de arte do jornal New York Times, considerado um dos pensadores mais influentes do design mundial, descreveu a pixação paulistana como um choque caligráfico impressionante e de um graffiti único na cidade São Paulo. 

   Para Heller, o estudo do tema abriu seus olhos para um sistema de escrita e ética de criação que se eleva a patamares acima até mesmo do graffiti norte-americano conhecido por ser mais animado e emblemático, através da sua caligrafia com letras pretas híbridas que reivindica as fachadas arquitetônicas da cidade de São Paulo como tela. 

   O movimento da Escrita de Rua, que tem como berço a capital paulista, vive um paradoxo estruturado pela ostensiva do Estado que, ao evidenciar a vertente no Código Penal brasileiro na categoria de "Crime Ambiental", contribui para o processo de demonização do ato de desenhar LETRAS. Um paradoxo que levanta questões pertinentes no que se refere ao contexto de segregação da sociedade em que vivemos; e como o Estado transforma em criminoso o jovem da periferia nascido no país do analfabetismo funcional que, ao aprender a desenhar as letras do próprio nome, passa a praticar intervenções artísticas através do emprego de sua assinatura, como meio de reivindicar o direto à cidade que lhe é negado. 

    Arte para uns, poluição visual para outros. 

   A Escrita de Rua já ocupava as fachadas dos prédios antes mesmo da moda das empenas.  As escolhas que são feitas pelos artistas da escrita envolvem planejamento, risco e, em muitos casos, super produções provocativas ao senso comum. Celebrar a memória da cultura da cidade sem falar da paisagem provocativa construída por essas narrativas, seria ignorar a verdade no que tange o processo do desenvolvimento desigual e desorganizado da metrópole controversa.

    A Escrita do Graffiti que denuncia as desigualdades da cidade é parte da nossa história, da nossa memória e, como todo processo cultural, criou regras próprias, modalidades e hierarquias. Evoluiu, tornando-se um expressivo movimento cultural e parte da estética da cidade. 

Uma forte característica da Escrita do Graffiti é e sempre será a transitoriedade, o que, na vertente de arte contemporânea, põe em xeque a noção de obra como objeto realizado. 

  Em 1966, Hélio Oiticica publicou o texto "A Nova Objetividade Brasileira", recusando a obra como contemplação passiva do espaço representado e evidenciando o momento da arte como campo da experiência. O autor destaca a relevância do conceito de arte efêmera, onde a obra de arte deixa de ser objeto, para tornar-se acontecimento. Se, enquanto para o artista do graffiti que se dedica a reproduzir personas dentro do seu processo evolutivo de aceitação e conquista de espaços, há ainda uma diversidade de opiniões ao que se refere ao apagamento de suas artes, para a Escrita o tema é uma condição pré-existente. Ao escritor, só existe a certeza da obra eternizada no registro, sendo o ato de fazer e a adrenalina do momento, a máxima recompensa.